A silenciosa adoção à brasileira
Publicada em 10/06/2011 às 16h53m
Paulo A.S. Mourão* e Paulo C. C. Campos**
A adoção traduz um rito de passagem. Da decisão de separação do menor, de sua família biológica, à inserção na família adotiva, o tempo precisa ser gerenciado com prudência. O retardo traz consequências negativas sobre o futuro desenvolvimento do menor. Maiores serão os impactos dos maus tratos e do abandono, e também as dificuldades adaptativas ao futuro lar.
No passado, e ainda hoje, ocorrem adoções paralelas ao sistema legal, muitas delas envolvendo espúrias trocas financeiras. São as chamadas adoções à brasileira.
A Organização Mundial de Saúde estima que há 8 milhões de crianças abandonadas no Brasil, porém, apenas 10 mil disponíveis para adoção legal. Paralelamente, dados recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) registram 86.696 menores infratores.
A Inglaterra possuía cerca de 20 mil adoções por ano na década de 70. Esse número caiu drasticamente para 2.500 adoções nos anos recentes. Tal redução é atribuída principalmente à política de prevenção e interrupção das gravidezes indesejáveis e ao menor preconceito em relação às famílias monoparentais. Essas informações são discutidas no site do serviço social inglês e mostram a inserção das adoções nas políticas sociais publicas.
No Rio Grande do Sul, o único estado que disponibiliza dados pelo site de seu Tribunal de Justiça, há registro de aproximadamente 700 adoções anuais. Considerando a relação proporcional com as respectivas populações, o Rio Grande do Sul possui um número de adoções semelhante ao da Inglaterra no período pós-legalização do aborto. Contudo com uma diferença fundamental: lá, as adoções são cada vez mais precoces e as daqui mais tardias. Em 1999, 39% das adoções na Inglaterra eram de crianças com até 4 anos. Dez anos depois, esse número aumentou para 60%. No caminho inverso, em 2003, 69% das adoções no Rio Grande do Sul eram de crianças com até 4 anos; em 2009 esse número caiu para 51%.
Paradoxal é a análise dos dados quando comparamos a demanda de pretendentes com as faixas etárias dos menores disponíveis para adoção no Brasil. O TJ-RS aponta que há 770 menores disponíveis para adoção e 5.299 pretendentes. Porém, 62% dos menores têm mais do que 10 anos e um número muito reduzido de pretendentes cogita adotar crianças dessa faixa etária (menos que 0,5%). Números muito parecidos aparecem no Cadastro Nacional de Adoção. Existem 4.743 menores aptos para adoção, 62% deles
com mais do que 9 anos de idade. Dos 28.346 candidatos a adotantes, menos que 0,5% aceitam menores nessa faixa etária. Os números não se adotam, as crianças envelheceram nos abrigos.
A simples análise quantitativa é suficiente para se deduzir que temos poucas adoções no Brasil e que os menores são colocados tardiamente para a adoção legal. Os Estados Unidos registram cerca de 120 mil adoções ao ano. Apenas o estado do Texas, com o dobro da população do Rio Grande do Sul, possui 10 vezes mais adoções (7 mil por ano). Um número próximo das adoções que se estima ocorrerem para todo o território nacional. O estado do Alasca tem aproximadamente o mesmo número de adoções do Rio Grande do Sul, apesar de a população ser 15 vezes menor.
Os dados do Cadastro Nacional de Adoção mostram que, entre os 10 estados mais populosos do Brasil, o número de menores disponibilizados para adoção por milhão de habitantes, se distribui da seguinte forma: Maranhão: 1,1; Bahia: 4,5; Pará: 6,6; Ceará: 14,3; Rio: 14,4; Minas Gerais: 20,1; Pernambuco: 24,5; São Paulo: 34,6; Paraná: 47,8; Rio Grande do Sul: 75,4. As regiões mais ricas possuem um maior número de menores disponibilizados para adoção em proporção às suas populações.
Basta conversar com pessoas que interagem com o sistema de adoção brasileiro para encontrar relatos estarrecedores, à semelhança da nossa própria experiência. O processo de separação do menor da sua família biológica se estendeu por dois anos, com sucessivos estudos sociais e adiamento da decisão. Finalmente o menor fugiu de casa, criando uma situação de fato, que levou a sua colocação num abrigo. Nós o conhecemos e recebemos sua guarda, em 2007, na cidade de Coronel Fabriciano, MG, com a idade de 11 anos.
O processo atualmente está em análise pelo TJ-MG, depois de inusitada decisão da juíza daquela comarca: deferiu a adoção, mas manteve os vínculos com a mãe biológica. Instaurou uma nova interpretação da lei, legitimando a adoção parcial. Não sabemos quando o processo irá se concluir, mas, em dois anos o menor completa 18 anos e se emancipa de sua família biológica. Terá sido mais rápido do que o sistema judicial e trilhará os caminhos da sua própria adoção.
Uma das facetas dissimuladas do preconceito é o entrave às adoções por gays, lésbicas e famílias homoafetivas. Seu índice foi sentido pela reação de setores conservadores perante a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ao reconhecer os direitos civis das relações homoafetivas. Os dados do TJ-RS mostram que os homens solteiros constituem o grupo social mais efetivo das adoções: 0,26% dos pretendentes a adoção e 3,78% dos que efetivamente adotam. Provavelmente porque aceitam as adoções tardias. Entretanto, para o conservador é melhor deixar o menor abandonado a lhe assegurar uma família homoafetiva. Cruel condenação fundamentada no preconceito.
Essas observações ajudam-nos a analisar os porquês das reduzidas adoções no Brasil. A verdadeira face da adoção à brasileira é aquela que tem a tez legal: lenta, cega para as novas formações familiares, constrangedora para os adotantes e extremamente tardia para os adotados.
*Médico, professor titular da UFRJ, pesquisador do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências; **médico do Hospital Federal da Lagoa (Rio)
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2011/06/10/a-silenciosa-adocao-brasileira-924659592.asp#ixzz1Oyx2Z0Hb © 1996 - 2011. Todos os direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A.