quarta-feira, 20 de julho de 2011

A silenciosa adoção à brasileira 

Publicada em 10/06/2011 às 16h53m 

Paulo A.S. Mourão* e Paulo C. C. Campos** 


No dia 25 de maio foi comemorado o Dia Nacional da Adoção e o governo federal lançou uma tímida campanha de estímulo à adoção, especialmente as tardias. Os dois eventos passaram despercebidos pela imprensa, mas deveriam se constituir numa oportunidade para uma discussão mais aprofundada. A adoção deve ser abordada como parte de políticas públicas voltadas para a infância e a juventude, e não apenas como um ato caritativo individual.
A adoção traduz um rito de passagem. Da decisão de separação do menor, de sua família biológica, à inserção na família adotiva, o tempo precisa ser gerenciado com prudência. O retardo traz consequências negativas sobre o futuro desenvolvimento do menor. Maiores serão os impactos dos maus tratos e do abandono, e também as dificuldades adaptativas ao futuro lar.
No passado, e ainda hoje, ocorrem adoções paralelas ao sistema legal, muitas delas envolvendo espúrias trocas financeiras. São as chamadas adoções à brasileira.
A Organização Mundial de Saúde estima que há 8 milhões de crianças abandonadas no Brasil, porém, apenas 10 mil disponíveis para adoção legal. Paralelamente, dados recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) registram 86.696 menores infratores.
A Inglaterra possuía cerca de 20 mil adoções por ano na década de 70. Esse número caiu drasticamente para 2.500 adoções nos anos recentes. Tal redução é atribuída principalmente à política de prevenção e interrupção das gravidezes indesejáveis e ao menor preconceito em relação às famílias monoparentais. Essas informações são discutidas no site do serviço social inglês e mostram a inserção das adoções nas políticas sociais publicas.
No Rio Grande do Sul, o único estado que disponibiliza dados pelo site de seu Tribunal de Justiça, há registro de aproximadamente 700 adoções anuais. Considerando a relação proporcional com as respectivas populações, o Rio Grande do Sul possui um número de adoções semelhante ao da Inglaterra no período pós-legalização do aborto. Contudo com uma diferença fundamental: lá, as adoções são cada vez mais precoces e as daqui mais tardias. Em 1999, 39% das adoções na Inglaterra eram de crianças com até 4 anos. Dez anos depois, esse número aumentou para 60%. No caminho inverso, em 2003, 69% das adoções no Rio Grande do Sul eram de crianças com até 4 anos; em 2009 esse número caiu para 51%.
Paradoxal é a análise dos dados quando comparamos a demanda de pretendentes com as faixas etárias dos menores disponíveis para adoção no Brasil. O TJ-RS aponta que há 770 menores disponíveis para adoção e 5.299 pretendentes. Porém, 62% dos menores têm mais do que 10 anos e um número muito reduzido de pretendentes cogita adotar crianças dessa faixa etária (menos que 0,5%). Números muito parecidos aparecem no Cadastro Nacional de Adoção. Existem 4.743 menores aptos para adoção, 62% deles
com mais do que 9 anos de idade. Dos 28.346 candidatos a adotantes, menos que 0,5% aceitam menores nessa faixa etária. Os números não se adotam, as crianças envelheceram nos abrigos.
A simples análise quantitativa é suficiente para se deduzir que temos poucas adoções no Brasil e que os menores são colocados tardiamente para a adoção legal. Os Estados Unidos registram cerca de 120 mil adoções ao ano. Apenas o estado do Texas, com o dobro da população do Rio Grande do Sul, possui 10 vezes mais adoções (7 mil por ano). Um número próximo das adoções que se estima ocorrerem para todo o território nacional. O estado do Alasca tem aproximadamente o mesmo número de adoções do Rio Grande do Sul, apesar de a população ser 15 vezes menor.
Os dados do Cadastro Nacional de Adoção mostram que, entre os 10 estados mais populosos do Brasil, o número de menores disponibilizados para adoção por milhão de habitantes, se distribui da seguinte forma: Maranhão: 1,1; Bahia: 4,5; Pará: 6,6; Ceará: 14,3; Rio: 14,4; Minas Gerais: 20,1; Pernambuco: 24,5; São Paulo: 34,6; Paraná: 47,8; Rio Grande do Sul: 75,4. As regiões mais ricas possuem um maior número de menores disponibilizados para adoção em proporção às suas populações.
Basta conversar com pessoas que interagem com o sistema de adoção brasileiro para encontrar relatos estarrecedores, à semelhança da nossa própria experiência. O processo de separação do menor da sua família biológica se estendeu por dois anos, com sucessivos estudos sociais e adiamento da decisão. Finalmente o menor fugiu de casa, criando uma situação de fato, que levou a sua colocação num abrigo. Nós o conhecemos e recebemos sua guarda, em 2007, na cidade de Coronel Fabriciano, MG, com a idade de 11 anos.
O processo atualmente está em análise pelo TJ-MG, depois de inusitada decisão da juíza daquela comarca: deferiu a adoção, mas manteve os vínculos com a mãe biológica. Instaurou uma nova interpretação da lei, legitimando a adoção parcial. Não sabemos quando o processo irá se concluir, mas, em dois anos o menor completa 18 anos e se emancipa de sua família biológica. Terá sido mais rápido do que o sistema judicial e trilhará os caminhos da sua própria adoção.
Uma das facetas dissimuladas do preconceito é o entrave às adoções por gays, lésbicas e famílias homoafetivas. Seu índice foi sentido pela reação de setores conservadores perante a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ao reconhecer os direitos civis das relações homoafetivas. Os dados do TJ-RS mostram que os homens solteiros constituem o grupo social mais efetivo das adoções: 0,26% dos pretendentes a adoção e 3,78% dos que efetivamente adotam. Provavelmente porque aceitam as adoções tardias. Entretanto, para o conservador é melhor deixar o menor abandonado a lhe assegurar uma família homoafetiva. Cruel condenação fundamentada no preconceito.
Essas observações ajudam-nos a analisar os porquês das reduzidas adoções no Brasil. A verdadeira face da adoção à brasileira é aquela que tem a tez legal: lenta, cega para as novas formações familiares, constrangedora para os adotantes e extremamente tardia para os adotados.
*Médico, professor titular da UFRJ, pesquisador do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências; **médico do Hospital Federal da Lagoa (Rio)
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2011/06/10/a-silenciosa-adocao-brasileira-924659592.asp#ixzz1Oyx2Z0Hb © 1996 - 2011. Todos os direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Quinta-feira, Junho 30, 2011

CONTARDO CALLIGARIS - Passeatas diferentes

Passeatas diferentes 
CONTARDO CALLIGARIS
FOLHA DE SÃO PAULO -30/06/11 

Por que alguém desfila para pedir não liberdade para si mesmo, mas repressão para os outros?

DOMINGO PASSADO, em São Paulo, foi o dia da Parada Gay.
Alguns criticam o caráter carnavalesco e caricatural do evento. Alexandre Vidal Porto, em artigo na Folha do próprio domingo, escreveu que, na luta pela aceitação pública, "é mais estratégico exibir a semelhança" do que as diferenças, pois a conduta e a aparência "ultrajantes" podem ter "efeito negativo" sobre o processo político que leva à igualdade dos homossexuais. Conclusão: "O papel da Parada é mostrar que os homossexuais são seres humanos comuns, que têm direito a proteção e respeito, como qualquer outro cidadão".

Entendo e discordo. Para ter proteção e respeito, nenhum cidadão deveria ser forçado a mostrar conformidade aos ideais estéticos, sexuais e religiosos dominantes. Se você precisa parecer "comum" para que seus direitos sejam respeitados, é que você está sendo discriminado: você não será estigmatizado, mas só à condição que você camufle sua diferença.

Importa, portanto, proteger os direitos dos que não são e não topam ser "comuns", aqueles cujos comportamentos "caricaturais" testam os limites da aceitação social.
Nos últimos anos, mundo afora, as Paradas Gays ganharam a adesão de milhões de heterossexuais porque elas são o protótipo da manifestação libertária: pessoas desfilando por sua própria liberdade, sem concessões estratégicas. É essa visão que atrai, suponho, as famílias que adotam a Parada Gay como programa de domingo. A "complicação" de ter que explicar às crianças a razão de homens se esfregarem meio pelados ou de mulheres se beijarem na boca é largamente compensada pela lição cívica: com o direito deles à diferença, o que está sendo reafirmado é o direito à diferença de cada um de nós.

O mesmo vale para a Marcha para Jesus, que foi na última quinta (23), também em São Paulo. Para muitos que desfilaram, imagino que a passeata por Jesus tenha sido um momento de afirmação positiva de seus valores e de seu estilo de vida -ou seja, um desfile para dizer a vontade de amar e seguir Cristo, inclusive de maneira caricatural, se assim alguém quiser.

Ora, segundo alguns líderes evangélicos, os manifestantes de quinta-feira não saíram à rua para celebrar sua própria liberdade, mas para criticar as recentes decisões pelas quais o STF reconheceu a união estável de casais homossexuais e autorizou as marchas pela liberação da maconha. Ou seja, segundo os líderes, a marcha não foi por Jesus, mas contra homossexuais e libertários.

Pois é, existem três categorias de manifestações: 1) as mais generosas, que pedem liberdade para todos e sobretudo para os que, mesmo distantes e diferentes de nós, estão sendo oprimidos; 2) aquelas em que as pessoas pedem liberdade para si mesmas; 3) aquelas em que as pessoas pedem repressão para os outros.
O que faz que alguém desfile pelas ruas para pedir não liberdade para si mesmo, mas repressão para os outros?

O entendimento trivial desse comportamento é o seguinte: em regra, para combater um desejo meu e para não admitir que ele é meu, eu passo a reprimi-lo nos outros.
Seria simplório concluir que os que pedem repressão da homossexualidade sejam todos homossexuais enrustidos. A regra indica sobretudo a existência desta dinâmica geral: quanto menos eu me autorizo a desejar, tanto mais fico a fim de reprimir o desejo dos outros. Explico.

Digamos que eu seja namorado, corintiano, filho, pai, paulista, marxista e cristão; cada uma dessas identidades pode enriquecer minha vida, abrindo portas e janelas novas para o mundo, permitindo e autorizando sonhos e atos impensáveis sem ela. Mas é igualmente possível, embora menos alegre, abraçar qualquer identidade não pelo que ela permite, mas por tudo o que ela impede.

Exemplo: sou marido para melhor amar a mulher que escolhi ou sou marido para me impedir de olhar para outras? Não é apenas uma opção retórica: quem vai pelo segundo caminho se define e se realiza na repressão -de seu próprio desejo e, por consequência, do desejo dos outros. Para se forçar a ser monogâmico, ele pedirá apedrejamento para os adúlteros: reprimirá os outros, para ele mesmo se reprimir. No contexto social certo, ele será soldado de um dos vários exércitos de pequenos funcionários da repressão, que, para entristecer sua própria vida, precisam entristecer a nossa.